Feliz Ano Velho



Livro que marcou toda uma geração de leitores e tornou-se obra de referência na literatura brasileira contemporânea, o romance autobiográfico Feliz Ano Velho de Marcelo Rubens Paiva foi publicado originalmente em 1982. O livro é um relato verdadeiro do acidente que deixou Marcelo tetraplégico, a poucos dias do Natal de 1979. Jovem paulista de classe média alta, vida boa, muitas namoradas, estudante de Engenharia Agrícola na Unicamp, ele vê sua vida se transformar num pesadelo em questão de segundos. Durante um passeio com um grupo de amigos, Marcelo, de farra, resolve dar um mergulho no lago. Meio metro de profundidade. Uma vértebra quebrada. O corpo não responde. Começa ali, naquele mergulho, a história de Feliz Ano Velho.
A partir do acidente, Marcelo vê sua vida mudar radicalmente. Seus dias no hospital, as visitas que recebeu, as histórias que viveu são relatadas sob uma nova perspectiva: a de um jovem que sempre fez tudo o que podia e queria, e que, agora, sentado em uma cadeira de rodas, vê-se impotente diante dos acontecimentos, dependendo da ajuda de amigos e familiares para reaprender a viver.
“Levei um ano para escrever este livro, tinha 26 anos. Ouvia Clash, era punk. Fiz só um tratamento depois de escrever, é meu livro mais visceral. É um livro que tem muitos flash-backs, que apareciam quando eu estava cansado de escrever a história principal, do acidente, e começava a falar sobre outras coisas. É um livro sobre construção de identidade, de fé, não é só um livro sobre o acidente”, afirmou Marcelo em entrevista recente.
O autor confere à narrativa a mesma energia e o mesmo fôlego com que transpôs a armadilha do destino. “O livro foi propositalmente coloquial, eu calculei que faltava naquele momento um livro que falasse a linguagem das ruas”. Imóvel numa cama, Marcelo, o personagem, dá asas às lembranças e à imaginação. Foram 12 meses de uma recuperação lenta e dolorosa: dias e noites intermináveis numa UTI, o colete de ferro, a descoberta de que teria como extensão do seu corpo uma cadeira de rodas, os momentos em que chegou a contemplar o suicídio.
Apesar do tema trágico, Feliz Ano Velho – vencedor do Prêmio Jabuti e adaptado para o teatro e cinema – tem momentos de humor, ternura e erotismo. Marcelo se encarrega de colocar em palavras a relação de amor e respeito à mãe, o carinho das irmãs, a camaradagem e encorajamento da turma, as festas e as fantasias sexuais. O acidente no lago seria o segundo tranco na vida do garoto. O primeiro foi aos 11 anos: o “desaparecimento” do pai – o ex-deputado federal Rubens Paiva – pela ditadura militar.


O escritor, dramaturgo e jornalista Marcelo Rubens Paiva nasceu em São Paulo, em 1959. Formado pela Escola de Comunicações e Artes da USP, freqüentou o mestrado de Teoria Literária da Unicamp e o King Fellow Program da Universidade de Stanford, Califórnia. Feliz Ano Velho (1982) é seu romance de estréia. Além deste, o escritor publicou 5 romances: Blecaute (1986), Ua:brari (1990), Bala na Agulha (1992) e Não És Tu, Brasil (1996) e Malu de Bicicleta. Todos serão relançados pela Objetiva.
Marcelo Rubens Paiva foi traduzido para o inglês, espanhol, francês, italiano, alemão e tcheco. Suas crônicas e contos foram reunidos nos livros. As Fêmeas (1994) e O Homem Que Conhecia as Mulheres (2006). Como dramaturgo, escreveu: 525 Linhas (1989); O Predador Entra na Sala (1997); Da Boca pra Fora – E Aí, Comeu? (1999, Prêmio Shell); Mais-Que-Imperfeito (2000); As Mentiras que os Homens Contam (2001); Closet Show (2001) e No Retrovisor (2002).


29 oct 2009

Jorge Antunes:uma trajetória de Arte e Política




Jorge Antunes tem a tranqüilidade de quem chegou aos 60 anos (completados em abril) com bagagem abarrotada de mais de 300 composições e a certeza de que é a vanguarda. O maestro e compositor tem cacife para usar a mesma frase proclamada pelo alemão Karlheinz Stockhausen, papa da música eletrônica que há alguns anos afirmava ser ele mesmo a vanguarda. Jorge é pioneiro da música eletroacústica no Brasil.

A revolução para Jorge Antunes, não assume, em momento algum, seu tradicional feito militar. Há a revolução estética. E há luta política. A obra de arte, para Antunes, parece seguir um caráter messiânico de libertar os povos sem necessitar pegar em armas, fuzilar ninguém... Seu temperamento é em nada bélico. Dir-se-ía, por outro lado, extremamente amoroso do mundo, amante e amigo. Seu conceito de briga passa pela defesa dos direitos numa Justiça que não deve nunca morrer. Ele acreditará sempre na Justiça. E por ela vai construindo suas peças, como para endossar seu papel, incrementá-la, torná-la mais verdadeira e difundida.



Plantou a semente das composições eletrônicas em solo tupiniquim há quase

quatro décadas e, desde então, luta para desfazer mal-entendidos quanto ao gênero. Lamenta a discriminação dentro da própria universidade — ‘‘para eles (professores) a história da música vai até Debussy’’ — e abomina o uso já banalizado da expressão ‘‘música eletrônica’’, bem conhecida de DJs e freqüentadores de raves e boates.

  ‘‘Vanguarda é uma expressão militar. Quem está na vanguarda está sempre na frente de batalha. Por isso sou vanguarda’’, explica. Para comemorar a luta constante desde que, estudante de física, encantou-se com a música de ‘‘vanguarda’’ ao assistir um concerto de Eleazar de Carvalho aos 19 anos, o compositor não quis festa.

  Até cogitou reunir todos os amigos importantes e soprar velinhas, mas preferiu transformar a comemoração em algo menos efêmero. Reuniu os amigos no livro Uma Poética Musical Brasileira e Revolucionária. Como o único homenageado de qualquer aniversário é o próprio aniversariante, natural que o livro seja única e exclusivamente sobre Jorge.

  O resultado está em mais de 300 páginas e 20 textos sobre algumas das mais importantes obras do compositor e sai pela sua própria editora, a Sistrum. Na lista de convidados entraram compositores como Gilberto Mendes, Sílvio Ferraz e Ricardi Tacuchian, aos quais se juntaram alguns dos intérpretes mais importantes do Brasil, como a flautista Odette Ernest Dias e o trombonista Radegundis Nunes Feitosa.

Engajamento político

Os textos, Jorge admite, são escritos por músicos e para músicos, mas podem também servir como instrumento para compreender melhor a obra do compositor. O lançamento em Brasília acontece em agosto, ao mesmo tempo que sai em São Paulo Jorge Antunes: Uma Trajetória de Arte Política, de Gerson Vale. ‘‘Esse é mais biográfico, uma espécie de tese sobre o papel um tanto raro que foi sempre estar fazendo uma música ligada à preocupação sociopolítica’’, adianta o compositor, professor do Departamento de Música da Universidade de Brasília e objeto de estudo de pelo menos mais quatro livros. É, portanto, dupla-homenagem. Além dos dois volumes, Jorge prepara ainda dois discos.

  O primeiro, editado pela Academia Brasileira de Música, na qual Jorge ocupa uma cadeira, traz as 12 primeiras composições do maestro e recebeu no ano passado o prêmio Rodrigo de Mello Franco, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O segundo faz parte da série ABM Digital, também da Academia, e tem registros das experiências com o GeMUnB, grupo de música eletroacústica dirigido por Jorge na UnB nos anos 70.

  A enxurrada de lançamentos é uma forma do compositor garantir que suas obras não caiam no esquecimento. A música erudita, principalmente a contemporânea, sofre desse mal e não tem o mesmo apelo que o gênero popular. E Jorge não perdoa. ‘‘Daqui a um tempo vamos comemorar os cem anos do nascimento do Roberto Carlos, mas duvido que se comemore os cem anos do nascimento de Jorge Antunes’’, compara. Bem, certamente isso vai acontecer e muito provavelmente o motivo será o tamanho da fama de Roberto Carlos, maior que a de Jorge Antunes.

  Por isso, talvez, seja tão importante para ele manter certo engajamento político. Foi assim quando compôs o Hino das Diretas Já nos anos 80, e, anos mais tarde, conduziu movimento pela adoção de novo Hino Nacional, com poema de Reynaldo Jardim. A obra só foi gravada em 2000, quando o Ministério da Cultura convidou compositores para criar sinfonias em comemoração aos 500 anos do Brasil. O tema está na última parte da Sinfonia em Cinco Movimentos, do disco Sinfonia Brasil 500 Anos. Tem música eletroacústica e música com orquestra, além de coro que recita o poema.

Expressão confusa
Música eletroacústica, aliás, é expressão que Jorge sempre faz questão de esclarecer. E daí a briga com DJs e o termo ‘‘música eletrônica’’. A música eletroacústica nasceu na Europa dos anos 1940 com a fusão das músicas concreta (manipulação eletrônica de ruídos produzidos pelo homem) e eletrônica (sons criados por aparelhos eletrônicos). No Brasil, a primeira composição eletroacústica, Pequena Peça para Mi Bequadrado e Harmônicos, data de 1961 e é de autoria de Jorge Antunes.

  ‘‘O problema é que, há uns seis anos, a mídia começou a usar o termo ‘música eletrônica’ para o que os DJs fazem. Só que eles ignoram a história’’,

lamenta o compositor, que tem projeto de usar os próprios DJs como elementos de uma obra erudita. ‘‘O evento aconteceria ao ar livre e misturaria a música eletroacústica que faço com ruídos que virariam algo dançante. Faria com os DJs o mesmo que faço com violinos ou quartetos de cordas.’’

  Enquanto o projeto não acontece, Jorge se concentra na produção da ópera Olga, sobre os últimos sete anos de vida da alemã Olga Benário Prestes, mulher de Luís Carlos Prestes. No próximo dia 28, o músico estará em São Paulo para o lançamento de Uma Poética Musical Brasileira e Revolucionária. Depois de concerto no Sesc Belenzinho, tem encontro marcado com equipe do Teatro Municipal paulistano para negociar a encenação da obra. ‘‘Em Brasília, já tentei montar algumas vezes, mas o governo nunca teve verba suficiente. Vamos ver se agora sai’’, aposta.

22 oct 2009

Sapos e escritores, crises e obsessões, num jogo de ironia, humor sutil e inteligência.


Bufo & Spallanzani é um romance repleto de citações  de e sobre outros autores e livros, além de muitas digressões sobre a arte de escrever narrativas. Enfim, tal obra literária está, sempre que possível, fazendo referências à própria literatura, o que, em outras palavras, costumamos chamar de exercício da função metalingüística.
lvan Canabrava narra acontecimentos de sua vida em flash-back. Ora a nós leitores ora a Minolta, sua namorada, amiga, amante e confidente. Várias histórias se entrelaçam, se misturam, nesse enredo de Rubem Fonseca. O livro se divide em cinco grandes partes: Foutre ton encrier, Meu passado negro, O refúgio do Pico do Gavião, A prostituta das provas e A maldição.
Essas partes correspondem a episódios da vida do narrador. Cada uma delas poderia ser independente caso não houvesse um fio narrativo condutor. No primeiro episódio, Foutre ton encrier, o escritor Gustavo Flávio conta a Minolta sua relação com Madame X. Compõe-se de seis capítulos. Madame X, mais tarde revelada como Delfina Delamare, é uma bela e casada grã-fina por quem o narrador se apaixona. Delfina é encontrada morta. O detetive Guedes suspeita de Gustavo Flávio, porém não tem provas contra ele. A princípio, levanta a hipótese de suicídio, porém após os exames periciais comprova-se o homicídio. O marido de Delfina, o ricaço Eugênio Delamare, tem interesse na idéia de homicídio.No capitulo 5, Gustavo Flávio revela a identidade de Madame X a Minolta. Conta também que recebera, antes da morte de Delfina, a visita ameaçadora do marido traído. No último capitulo. Gustavo Flávio é convidado a depor como um dos suspeitos do assassinato de Delfina Delamare.
O segundo episódio — Meu passado negro — volta ao passado de Gustavo Flávio. Antes de ser Gustavo Flávio, o escritor havia sido professor primário, amante de Zilda. Seu nome: lvan Canabrava. lvan passa a trabalhar numa firma de seguros, que deverá pagar um prêmio altíssimo a Clara Estrucho, viúva de Maurício Estrucho, que fez o seguro poucos meses antes de morrer. Desconfiado, lvan começa a investigar o caso. Descobre, no lixo encontrado no apartamento abandonado do casal Estrucho, um sapo morto e um ramo de flores murchas. Com a ajuda de Ceresso, presidente da Associação Brasileira de Proteção ao Anfíbio, lvan Canabrava descobre também que o veneno do sapo, da espécie Bufo marinus, associado ao sumo da planta, causa catalepsia profunda. Excitado pela descoberta da fraude, lvan não percebe o descaso de seu chefe e entrega-lhe o relatório completo de suas investigações. No entanto, sob suspeita de loucura, lvan não tem crédito e parte para a experiência da catalepsia. Mesmo com seu próprio atestado de óbito, lvan não consegue convencer o chefe. Não desiste, porém: vai ao cemitério acompanhado por Minolta, Siri e Maria, seus amigos hippies, para abrir o túmulo onde estaria Maurício Estrucho. Na ocasião são surpreendidos pelo coveiro e, para calá-lo, lvan o agride, matando-o sem querer. lvan é preso e considerado louco. Vai para o Manicômio Judiciário, de onde foge com a ajuda de Minolta e Siri.
Passa então dez anos escondido com Minolta. lvan Canabrava adota o pseudônimo de Gustavo Flávio (uma homenagem ao escritor francês Gustave Ftaubert), engorda trinta quilos, torna-se escritor famoso e aprende a amar as mulheres. Por sugestão da sua segunda companheira, volta ao Rio de Janeiro. No final da segunda parte, o narrador retoma o relato sobre seu romance com Delfina Delamare. Minolta observa que o escritor está sentindo dificuldades para começar a escrever seu romance Bufo & Spallanzani e sugere a Gustavo Flávio que se recolha ao Refúgio do Pico do Gavião.
O terceiro episódio poderia constituir-se em outro história, não fosse também vivenciada por Gustavo Flávio. O Refúgio do Pico do Gavião refere-se à conturbada estada do escritor nesse lugar. Há outros hóspedes: um elegante casal de bailarinos, Roma e Vaslav; um maestro e sua esposa prima-dona, Orion e Juliana Pacheco; um rapaz magro e tímido, Carlos; duas "primas", Suzy e Euridice, que são, na verdade, amantes. Além dos hóspedes, outras personagens participam da trama: Trindade, proprietário do lugar, e D Rizoleta, sua mulher. Numa conversa entre os hóspedes, o maestro questiona o talento dos artistas literário defendendo a idéia de que qualquer um pode ser escritor.
A propósito, começa a perceber-se a ligação do romance com o titulo: Bufo marinus é a espécie de sapo encontrada por lvan Canabrava; Spallanzani foi um biólogo italiano do século XVIII que estudava a circulação sanguínea, a digestão e os animais microscópicos. A Experiência que o escritor deseja relatar em seu romance tem como personagens dois sapos, Bufo e Marina (qualquer semelhança será mera coincidência?), cobaias de Spallanzani. Ao mesmo tempo, os hóspedes do Refúgio separadamente mostram a Gustavo Flávio suas narrativas que, segundo o narrador, são autobiográficas. Constata-se que realmente escrever é muito difícil. Durante este episódio, acontece outro crime: Suzy é encontrada morta. Ao mesmo tempo, Minolta recebe um aviso sobrenatural e resolve procurar Gustavo Flávio no Refúgio. O detetive Guedes também vai ao encontro de Gustavo Flávio.
O quarto episódio divide-se em três capítulos: neles começa a ser desvendado o assassinato de Delfina. Guedes descobre que o assassino confesso não matara a grã-fina e deixa-o em liberdade. O farsante fora pago por Eugênio Delamare, o marido traído, para que o caso fosse encerrado na policia. Guedes, em suas andanças pelo local do crime, encontra Dona Bernarda e seu cão Adolfo. Ela é a testemunha de que Guedes precisa para incriminar Gustavo Flávio. A última parte, intitulada A maldição, está reservada para o clímax e o desenlace. 

15 oct 2009

Memorial de Maria Moura



Ao decidir escrever Memorial de Maria Moura, - imenso painel sem retoque de relações sociais, culturais, morais e afetivas entre personagens sábia e comovidamente delineadas, Rachel de Queiroz adotou um estilo narrativo em que muitas sequências se encontram montadas à maneira de uma telenovela. Tanto é desta forma que a obra foi adaptada para a televisão para uma minissérie.

O romance é uma das narrativas mais marcantes da escritora, também cronista do Estado, e a trama situa-se em meados de 1850, no sertão. Misturam-se na narrativa todas as forças e fraquezas, todas as virtudes e defeitos da condição humana, desde o amor ao ódio, desde o crime ao remorso.

Na obra são retomados alguns dos temas básicos de Rachel de Queiroz: o Nordeste problemático, a preocupação social, a força da autora como criadora de figuras femininas singulares.

Memorial de Maria Moura, publicado em 1992, é escrito em primeira pessoa. Assim, a estória é contada por quem a viveu, e o leitor se delicia com a mudança constante de ponto de vista: ora fala a personagem Marialva, ora o Beato Romano, e, no mais das vezes, a própria Moura conversa com o leitor. É quase possível vê-la, sentada no batente da fazenda, dentro de suas calças de homem, contando os "causos" de sua vida.

Inicialmente, o romance tem três núcleos de ação: o de Maria Moura, dos primos inimigos dela e o do Padre José Maria (Beato Romão). Posteriormente surge o sub-núcleo Marialva e Valentim (com seus parentes mãe, pai e tio, no "circo"). Os últimos capítulos são narrados por Moura e pelo Beato que se joga numa aventura suicida com ela.


Essa dinâmica entre os três narradores torna a obra envolvente, e não se pode dizer que o livro traz uma estória apenas: são pelo menos três, uma contada pelo padre que pecou com uma paroquiana e virou beato, outra pela mulher do saltimbanco, outra pela moça que incendiou a casa e virou vaqueira. As três versões acabam se juntando e entrelaçadas, formam um painel de nordestinidade que a autora soube trabalhar muito bem.

Em Memorial de Maria Moura, a autora utiliza-se do discurso polifônico (várias vozes). Como já citado, são vários narradores, porém o que se pressente é que por trás deles esconde-se o pulso vigoroso da cearense e que os diversos narradores, dentre os quais Maria (cada capítulo carrega o nome de um deles) são como títeres da força reivindicativa de Rachel. Salientando: dentre os narradores estão o Padre José Maria, Irineu e Tonho (primos da Moura, o primeiro solteiro; o segundo, casado com uma megera chamada Firma) e Marialva (prima de Maria que fugiu e casou com um artista de circo, Valentim). A participação dos diversos narradores propõe uma certa ruptura com a linearidade.

Outros personagens vão ganhando destaque na trama: Duarte, meio irmão dos primos de Maria e filho da ex-escrava Rubina, ajudou Marialva a fugir; os capangas de Maria: João Rufo, antigo e fiel empregado do Limoeiro e "padrinho" da heroína, Zé Vicente, Juco e outros.


No início, Maria confessou ao Padre José Maria que ia mandar assassinar seu padrasto por ter abusado dela. Após os crimes, Maria arrancha-se com Amaro e Libânia, na Lagoa do Socorro. A miséria era absoluta. Maria assaltou umas pessoas e as coisas foram melhorando. Comida e equipamentos vão fortalecendo Maria e seu bando. Com o estilo folhetinesco nos são apresentados os colonizadores do sertão nordestino. Os que resistem agem de maneira brusca, lembrando muitas vezes um comportamento instintivo, atávico, onde o meio dita as regras. A Moura é o eixo, o ponto de convergência, símbolo do poder e da ambição. No final do livro, apenas ela e o Beato Romano narram. A narrativa em primeira pessoa vai impregnando o romance de subjetividade.

13 oct 2009

Pixote-Infância dos Mortos


Meninos de rua, sem família, sem estudo e sem perspectiva de uma vida mais digna. São crianças que têm a infância obscurecida pelo mundo das drogas e do crime. Vivem à mercê da sorte. Não vão à escola, mas as ruas se incubem de ensinar-lhes as lições. Desconhecem onde vão dormir ou o que comer, mas sabem o que fazer para resolver esse problema. Em algum momento até sonham em mudar de vida, mas os sonhos acabam se convertendo em esperança de se tornar conhecido no mundo do crime.

Esse é exatamente o cenário de Pixote - Infância dos Mortos, livro escrito pelo jornalista José Louzeiro em 1977. A trama descreve a trajetória de um grupo de meninos que se conhecem na rua e se tornam amigos. Pixote é o menor deles, tem apenas 9 anos de idade. Seus companheiros são Dito, Fumaça e Manguito. A rua não é o único ponto em comum entre eles; o destino será cruel com todos. A obra é realista, pesada, crua. Choca e escandaliza ao descrever a realidade das ruas.

Diferente do que muitos pensam, o personagem principal do livro acaba sendo Dito. Dos amigos de Pixote, ele é o mais velho. É o que dita as regras, que luta contra a polícia, que faz as transações com os traficantes, que diz quem deve matar ou morrer. É também o protetor do grupo e na maioria das vezes o mais sensato. Por ser o mais forte, Dito acompanha o fim de todos, um por um, até se encontrar só, lutando pela sobrevivência.

O personagem Pixote, mesmo tendo uma breve participação no livro de Louzeiro, foi inspiração para que, quatro anos mais tarde, o diretor Hector Babenco lançasse o filme Pixote - A Lei do Mais Fraco (1981). Neste, o menino Pixote é abandonado por seus pais e acaba caindo nas ruas. Tem somente 11 anos de idade, mas já conhece tudo o que diz respeito às drogas, ao crime, à marginalidade, à violência, à indiferença. O filme de Babenco recebeu vários prêmios e marcou o cinema da época ao abordar o polêmico assunto.

A história do menino Pixote poderia ter parado por aí. No entanto a ficção ganhou contornos mais reais do que se imaginava. Escolhido para interpretar Pixote, Fernando da Silva Ramos, menino pobre da periferia, experimentou, mesmo que instantaneamente, o gosto da fama. Esta não durou muito tempo. Fernando até tentou seguir carreira, mas as oportunidades não apareceram. Envolve-se com o crime e vai preso. Anos mais tarde foi morto pela polícia. Sua história inspirou o livro Pixote Nunca Mais, de Cida Venâncio, e o filme Quem Matou Pixote?, de José Joffily.

Pixote fez parte de histórias diferentes, mas que de uma forma ou outra foram muito iguais. O imaginário e o real. Um pobre menino de rua, que viveu a realidade de uma vida baseada no crime, nas drogas e na falta de expectativas.

6 oct 2009